quarta-feira, 26 de janeiro de 2022


O Beco do Pesadelo

 

Depois de nos ter brindado com A FORMA DA AGUA, produção premiada de beleza singular  , o simpatizante aos temas de terror, fantástico e fantasia, o mexicano Guillermo del Toro numa tentativa de adentrar e renovar(?) adentra o universo noir (perdoem a rima, não foi intencional)e faz uma releitura de O BECO DAS ALMAS PERDIDAS, película do  Edmund Goulding, de 1947, baseada no romance do escritor noir Willian Lindsay Gresham. Nesta versão, sai o necessário e determinante preto e branco e entra a versão meio que glamourizada de Del Toro. A narrativa nos conta a velha história do sabido que acha que todos são otários e no fim das contas, bem ... sem spoiler...Passada na segunda guerra mundial , a história do sujeito de passado nebuloso e de vida fracassada consegue emprego num circo ali desenvolvendo espetáculo ilusionista com truques diversos, o que lhe outorga depois de experiente deixar o circo e viver de golpes... Em um de seus shows conhece uma psiquiatra, companhia que faltava para saltos e golpes maiores... Bem, a narrativa até chegar a esse momento nos soa lenta e sem muitos atrativos, a atuação do Bradley Cooper como Stanton Carlisle, o golpista, tem momentos de grande performance, sua caracterização é exemplar e a química estabelecida entre as duas atrizes Toni Collette a vidente e Cate Blanchet, a psiquiatra golpista é meio duvidosa... Toni faz uma vidente exemplar, já Cate nunca esteve tão esquisita e caricata, tudo nela soa exagerado e artificial na tentativa de construir uma femme fatale que não convence... A reconstrução de época é de um primor pouco visto, os elementos de cena super criteriosos e em meio ao glamour, talvez resida ai um de seus pontos francos, a narrativa se distancia da sujeira e do sub mundo em P&B  que o personagem do Cooper é mergulhada(no romance e na adaptação anterior) e de lá a todo custo tenta sair. Após os 90 minutos a narrativa embarca na atmosfera que del Toro  constrói de melhor, com todos os exageros, inclusive os pertinentes, em cenas de beleza e impacto que acabam por amenizar a lentidão dos 90 minutos  iniciais. Ainda assim fica nos devendo muito do proposto...

Ficha Técnica:

Título: Nightmare Alley

Direção: Guillermo del Toro

Roteiro: Guillermo del Toro, Kim Morgan

Elenco: Bradley Cooper, Cate Blanchett, Rooney Mara, Toni Collette, Willem Dafoe

 

 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022


 

EDUARDO & MÔNICA

A saga do romance improvável, descrito na inspirada e amada canção do saudoso Renato Russo estreia no cinema firmando-se como um dos grandes lançamentos do cinema nacional deste ano que desponta... René Sampaio pulou a fogueira dos equívocos em adaptações de grandes sucessos de público e crítica, como é o caso da canção do Renato, além evidentemente da tarefa hercúlea de transformar uma canção de minutos num belo filme de duas horas, sem comprometer seu conteúdo em função de enxertos ou acréscimos para cumprir a função. Com um roteiro bem amarradinho, uma reconstituição de época bem bacana, trilha sonora caprichada   e uma dupla de atores de carisma e química excepcional o projeto não poderia falhar, é exatamente o que acontece, a fórmula deu certo e temos um filme super bacana onde a tônica da relação improvável fica muito pequena frente a grandeza do amor.  Alice Braga e Gabriel Leone numa química extraordinária (isso sem falar no Gabriel que aos 28 faz um garoto de 16 e emplaca legal) nos dão de presente um dos memoráveis casais, que desde já estão na memória de expectadores mais atentos e na coletânea de grandes duplas românticas no histórico do cinema nacional. A história do garoto que se apaixona pela mulher mais velha e de hábitos e visões de mundo completamente diferentes dos seus e embarca nesta paixão avassaladora é de uma beleza e honestidade singular. Com diálogos e situações honestas e encantadoras, o filme é um ´presente em tempos tão sombrios de confrontos e de desamor. A atuação da dupla de protagonistas é incorrigível, Alice Braga, que há muito já se firmou como uma das grandes atrizes brasileiras a decolar carreira aqui e no exterior faz uma Mônica irretocável, o Renato deve estar a sorrir. Gabriel Leone é uma das promessas de uma galera jovem que desponta com talento, carisma e determinação. Transitando no cinema e na TV, com forte e inspiradoras ligações musicais (seu nome foi inspirado numa canção do Beto Guedes) é um daqueles atores criteriosos (apesar da pouca idade) que dispensam vínculos ou contratos vitalícios e atua em participação por obras, uma atitude acertada e inteligente frente as novas mudanças estabelecidas no novo cenário artístico (na TV). A composição de ambos os personagens é de uma riqueza fabulosa, em nenhum momento beira o caricato ou exagerado e nos passa uma sensação de verdade absoluta. A escolha das locações é outro achado, o que deixa a fotografia muito além da média da fotografia dos filmes nacionais. A equipe de arte capricha em alguns momentos e nos brinda com excelentes cenas e sobretudo uma poética que dialoga com a história e os personagens sem soar falso ou desconexo, exagerado. Foi sábio e honesto o caminho encontrado pelo diretor, há momentos em que a relação é atemporal, desvinculada de qualquer época assim como também seu universo geográfico, naquele momento o que importa são as pessoas e o pulsar dos corações, as conexões e os desejos, neste quesito a química da dupla fala mais alto e é determinante. Com sábias e sutis abordagens o diretor ainda encontra espaço para sutilmente falar sobre questão de gênero, abordagem atual que enriquece e ilumina a saga da dupla improvável, amada e sobretudo sábia. Taí uma bela e poética história de amor, como há muito estávamos a precisar. Em tempos sóbrios de confronto e desamor EDUARDO & MÔNICA soa como um bálsamo, de inspirada e singular conexão!

Nos cinemas a partir de 20.01.2022  

Ficha Técnica:

Direção: René Sampaio         

Roteiro: Gabriel Bortolini, Jessica Candal

Elenco: Gabriel Leone, Alice Braga, Victor Lamoglia, entre outros

 


BENEDETTA

Impressionante como em pleno século 21, o tema abordado em BENEDETTA cause tanto escândalo, tanta indignação, tanta polêmica. É sabido que Paul Verhoeven é chegado a abordagens cruas, mensagens diretas e excelência na condução dos temas propostos. Depois de ter nos brindado com Robocop, Showgirls e Instinto Selvagem, suas obras de destaque, eis que nos chega BENEDETTA, narrativa baseada numa história real. A história de Benedetta que  aos nove anos já surpreendia e adentra o convento levada pelos pais e la cresce com uma relação um tanto quanto fora do padrão aceitável com Jesus Cristo... Desde cedo ela surpreende com situações que beiram milagres,  é atormentada por sonhos onde Jesus Cristo sempre presente protagoniza relações carnais...Numa das cenas que escandalizou a igreja, Beneditta posiciona-se frente a Jesus Cristo na Cruz numa espécie de cópulas insinuada... um afronta aos dogmas .. A chegada ao convento e as negociações para seu ingresso nos dão uma ideia do papel da igreja aquela época, onde a postura autoritária da madre superiora vivida por uma inspirada Charlotte Hampling. No convento Beneditta conhece  Bartolomea, a partir daí a história ganha outros rumos, a cumplicidade entre as duas  brota e da convivência o amor e o envolvimento carnal explodem de forma explicita e lindamente registrada por um Paul corajoso e  inspirado. Baseado no livro ATOS IMPUROS- A VIDA DE UMA FREIRA LÉSBICANA ITÁLIA DA RENASCENÇA, o roteiro apenas inspira-se no fato verídico e nos constrói um painel da postura da igreja, os padrões sociais da época, a peste e o poder da religião. BENEDETTA é atormentada, sofre com visões, chagas no corpo, vivencia situações milagrosas e belas e explicitas acrobacias sexuais com a colega de quarto. Paul não faz juízo de valor, não constrói uma obra de viés determinante ou potencialmente claro e esclarecedor, deixando sempre pairar a dúvida, ainda que a história tenha sido baseada em fotos reais. Os tormentos vividos por Bernadetta são compartilhados por um Jesus Cristo cúmplice num possível papel de marido protetor. Há uma cena inicial onde uma cobra rouba a cena e faz uma pertinente analogia as questões de Adão e Eva e a expulsão do paraíso, em meio a chegada de Bartolomea... Seria ela a tentação a roubar-lhe o paraíso e apresentar-lhe o prazer sem culpa, a descoberta do corpo e suas possibilidades ? Em meio a essa possibilidade surge a transformação (ideia de Bartolomea) da santa presenteada pela mãe em brinquedinho sexual que detona e determina a condenação de Benedetta pelo representante do papa. A partir dai a narrativa ganha ares de crueldade apresentando cenas de torturas e mais uma vez expondo a cruel realidade da igreja e seus desmandos, dentre eles. fogueira e enforcamento para citar alguns... Como vemos o filme é carregado de grandes questionamentos e mostra sem pena uma realidade que hoje macula a trajetória da igreja, dividindo opiniões, principalmente dos católicos mais fervorosos. A produção é primorosa, as atuações do trio de atrizes , Virginie Efira (Benedetta), Daphne Patakia (Bartolomea) e Charlotte Rampling (Madre Superiora) é irretocável. São belas as cenas de sexo lésbico, explicitas sem ser apelativas ou até mesmo gratuitas... A reconstituição de época prima pelos cuidados , a trilha sonora é outro show a parte, emoldura com excelência os momentos de tensão e emoção. É um filme impactante e ao mesmo tempo de um lirismo e poética da fé pouco visto... Impossível vê-lo sem que questionamentos e queda de valores e convicções ganhem outras abordagens... Provocativo, instigante, BERNADETTA consegue ser cruel e lírico, pesado, mas corajosamente direto e explicito sem medo ou pudor... Um cinema necessário e genuinamente bem construído e assertivo.

Ficha Técnica:

Título: BENEDETTA

Direção: Paul Verhoeven

Elenco: Virginie Efira, Daphne Patakia, Charlotte Rampling entre outros